Recentemente um pai de uma criança nos contou de ter ouvido em uma palestra que a raiz semântica da palavra COMER no hebraico é a mesma de COMUNHÃO, reafirmando que a alimentação é a primeira forma de relação: representa cuidado, amor, sobrevivência, nutrição e atenção. Por que às vezes é tão difícil? Por que, então, algumas crianças passam a ser tão seletivas a partir de um ano e meio ou dois?
Nessa idade, as crianças estão mais conscientes de suas habilidades no mundo. Com a conquista do andar, aumenta a busca por desvendar o mundo, tornam-se mais exploradoras, recebem mais “nãos” declarando os limites e passam a reconhecer e discernir cada vez mais suas vontades. Junto a isso, a proporção do crescimento que aconteceu nos dois primeiros anos de vida diminui, nunca mais será a mesma que nesta etapa, e aumenta o gasto de energia pelos movimentos corporais. Assim, há uma tendência natural pela escolha de alimentos um pouco mais calóricos (e por isso também a importância de ter tido um paladar bem estimulado até então).
Para “conquistar” o mundo, lançar-se a ele para conhecê-lo, muitas vezes as crianças precisam se distanciar um pouco do “ninho”. É uma idade em que acontecem muitos desmames, em que as crianças começam a reproduzir os “nãos” recebidos do pai e da mãe, querem fazer as coisas por conta própria. E aí batem muitas dúvidas – função da natureza que serve para segurar um pouco. Dá medo enfrentar o mundão! Ele é atraente e ao mesmo tempo arriscado. Elas parecem ligadas num elástico: vão e vêm – correm para o parque e logo voltam correndo para a barra da calça da mãe e do pai.
Escolhem o que e como comer, mas às vezes só comem se dermos novamente na boca...
E diante das preocupações de quem quer uma criança saudável, ela sente como suas ações mobilizam a mãe e o pai, e esses momentos se tornam “ringues de batalha”.
Cada pessoa constrói seus próprios significados em relação à alimentação, não podemos generalizar. Algumas crianças têm paladar, tato, olfato muito apurado, por
exemplo, estilos diferentes, preferências reais, necessidades específicas. Diante de situações desafiadoras, a batalha principal deve ser a busca pela construção de um SIGNIFICADO POSITIVO, PRAZEROSO da alimentação e não um momento de tensão. Compartilhamos algumas ideias:
- Significar a alimentação positivamente envolve processos: calma! A criança precisa se perceber mais do que perceber as reações dos outros, desenvolvimento significados próprios – a alimentação tem que estar em função dela e não de atender a expectativa dos adultos e, ainda assim, a alimentação pode ser compartilhada
– um momento de relação, comunhão entre os seres humanos...
- Estesia e participação: convidar a criança para participar envolvendo os diversos sentidos que o momento pode oferecer para além do paladar – sons, visão, olfato:
ajudar a preparar uma salada ou participar de alguma etapa de um preparo, fazer uma culinária para a refeição (e não apenas bolos para os lanches...), escolher algo para enfeitar/arrumar a mesa, estendendo a toalha, colocando guardanapo, levando os itens de cá para lá, cheirar temperos ou alimentos sem insistir para experimentar, apenas para ter o prazer de conhecer, identificar e sentir. Pode-se registrar os momentos em que a criança ajudou num preparo e registrar junto com a receita – dar valor, tornar visível isso para todos.
- Ajudar a criança a conhecer os alimentos nas suas diversidades de formas, nomes, cores, tipos, preparos. Pesquisar sobre os alimentos. Levar a criança junto ao varejão, à feira, convidá-la a escolher os itens, descobrir os nomes, atentar-se às minuciosidades das escolhas dos itens mais adequados – podem fotografar os
alimentos nas suas diversas formas, tanto de variedades (tipos de grãos, feijão branco, preto, carioca) quanto de preparos diferentes.
- Não insistir na experimentação, incentivar, mas não pressionar. Manter a variedade de alimentos sempre à mesa/na casa, sustentar proximidade dia a dia mesmo que por anos. Não deixar de ter aqueles alimentos recusados presentes no ambiente. Garantir que alguns estejam no campo de visão da criança, por exemplo, a fruteira na altura/à vista.
- Alguns elogios trabalham no sentido contrário do incentivo: “comeu tudo! Parabéns!!!” pode servir para que a criança coma mais do precisa tendo como referência o retorno do adulto. É importante que ela perceba a sua saciedade. Outras falas para se pensar na relação com cada criança: “a última colherada”, “só mais uma!”.
- Cuidado com os rótulos, com aquilo que se fala ou pensa a respeito da criança nos seus desafios com a alimentação, tais como: “não come nada”, “é chato(a) pra comer!”, “enjoado...”, “nunca quer experimentar nada”, ou comparações: “puxou o pai!”, “já a irmã come de tudo!”, “nunca me deu trabalho para comer”. São sentidos dados e muitas vezes incorporados de tal maneira que fica difícil a abertura para novos conceitos de si mesmo.
- Não tornar a dificuldade com a alimentação O assunto da família – muitas vezes a família fica tão tensionada que sem se dar conta só fala disso, ao voltar da escola,
pergunta: “o que você comeu hoje?” (e é bem provável que já saiba o que tinha de lanche...); ao ir para avó já vai uma recomendação “tenta dar isso, mas duvido... vai chover se ela comer”, ou, a família “força”, exagera modelos falseando a verdade: “hummmmm, que delícia! É tããão gostoso” e pode estar falando isso só porque a mãe falou para o pai, por exemplo, que a criança não come porque ele também não dá exemplo. Buscar ser assertivo sem mentir, nem focar o assunto.
- Pesquisar sobre gostos e preferências das outras pessoas em relação aos alimentos, observar multiplicidade e que é normal não gostar de algumas coisas assim como apreciar muitas outras. Fazer enquetes investigativas.
- Entre a questão da assertividade e do respeito, habitam algumas situações constrangedoras, como ir à casa da avó que prepara um almoço com dedicação e fica
chateada pela recusa da criança. Ao invés de brigar para a criança “não fazer desfeita”, ou apelar para o emocional dizendo o quanto “a vovó vai ficar muito triste se
você não comer”, ou de reclamar com a avó para não ficar falando assim, “que não adianta que ela não come”, podemos equilibrar dizendo (para ambas), por exemplo, “tenho certeza que você preparou com muito carinho, e quando ela puder, vai experimentar e descobrir aos poucos seus gostos, agradeço pela dedicação de todos”.
- Orientar respeito com o alimento mais do que a obrigação de aceitá-lo. Não precisa fazer careta, demonstrar nojo, apenas dizer que não quer e conversar – utilizar a
recusa como oportunidade de abrir diálogos ou investigações e não de fechar conceitos.
- Contar histórias pessoais e outras relacionadas à alimentação: contos clássicos e histórias que já ouviram de outras pessoas: “meu avô contava que o irmão dele gostava tanto de pamonha que tinham que esconder a do outro irmão até ele chegar da escola senão comia tudo, farejava até achar!”; “minha nonna fazia a massa do macarrão em casa, ficava tudo branco de farinha, tinha fios e mais fios de espaguete espalhados por toda a casa”.
- Compartilhar e investigar códigos sociais associados à alimentação, não como cobrança, mas como oportunidade de relação, de a criança participar desses códigos,
compreendê-los, se envolver pensando e não apenas na lida “emocional” perante tais situações: posição dos talheres, do copo, do cotovelo, não falar de boca cheia, uso do guardanapo, descanso de mesa, a palavra “sobremesa”, sentar à mesa x sentar na mesa – e seus motivos ou história de construção social desses códigos, diferenças culturais.